A lua estava cheia de si, cheia de luz, cheia de sol.
Vagueava sua luz pela cidade.
A moça sentada na varanda a olhava.
E a lua disse:
_ Serena-te, silencia-te e ouça o barulho do turbilhão que há dentro de você.
A moça estava acompanhada de um morto, ela sempre levava um morto para cama antes de dormir. Acariciava-lhe as faces passando as páginas com os dedos.
Olhava para a lua sem piscar, hipnotizada. Viu aquele satélite em seu total esplendor refletir-se na água. Lembrou que quando era criança sonhava que pulava no riacho e o alcançava.
Sentiu desenvolver dentro de si o animal que a doma, quis colocar-se na posição quadrúpede, uivar loucamente, saudá-lo.
O morto disse que não.
_ Coloca-te sentada, pega uma pena e tinta, rabisca palavras num papel, veja em que posição está a lua no seu mapa astral, transforma o animal em gente e faça dele poeta. Seja você o animal, a pessoa e o poeta e transforma outros animais em pessoas e poetas, seja mil, seja um milhão, seja infinita.
A moça olhou para o morto serena como a lua havia mandado.
_ Acalma-te, gênio! Apenas cogitei a hipótese de uivar para a lua, ainda não passei isso pelo crivo da razão! Senta ao meu lado, olha para a lua e ve se entendes a metafísica.
O morto riu coçando a barba, olhou para a moça em silêncio, fechou os olhos e procurou sentir a sensação gostosa que o atrevimento da moça lhe causava.
6 comentários:
A gente sempre lê mais o que tá na nossa cabeça do que o que tá nos nossos olhos, então corrija-me se estiver [muito] errado: vi na cena o morto sendo um livro, que é o que os livros quase sempre são: mortos ainda capazes de serem ótimas companhias em nossas solidões metafísicas. Mas não vou censuar nenhuma eventual versão mais necrófila que essa. Eu não sei se é uma propriedade desses pequenos textos que são "recortes" rápidos de cenas, feitos ainda de forma que muita coisa não se precise nos detalhes, mas o fato é que quando eu li "O póstumo e a lua" ontem, e eu estava em um momento pessoal particularmente perturbado por razões diversas, tive qualquer sensação de que o morto era a própria moça, alguma transfiguração de um interior escondido dela que era renegado por qualquer razão e insistia em aparecer ali e que de repente se tornava de certa forma íntimo e cúmplice de sua antítese. Hoje li de novo, com mais calma, conforme prometi, e a sensação já foi totalmente diferente. Algo bem mais leve, não é? Imaginar que o morto era só um livro, ali... Mas mesmo com dois chutes, não tenho pretensão nenhuma de adivinhar o que realmente se passou em sua mente enquanto escrevia. Minha teoria literária é muito limitada e minha imaginação interpretativa muito irresponsável, pra que eu chegue a qualquer chute que preste. Adiciono que é precisamente por não se fechar em uma interpretação única e definitiva que gostei do texto!
Sobre seus incontidos e bem-vindos lapsos de revisora: No "teorema", as "letras" referem-se mais a teorização dos instintos mesmos, a deixar as coisas todas compreendidas e explicadas em livros e tratados que não precisam se limitar à "literatura" (enquanto arte). Sobre a questão da fé... estou aqui me fazendo a mesma pergunta... (que feio confessar isso, não é?) O texto é velho (2005) e sinceramente até agora não lembro exatamente qual era minha crise religiosa da vez.... [5 minutos depois...] Ah sim! Então, eu estava perturbado com o contraste entre nosso mundo interior e exterior, e dê repente vi os religiosos como pessoas mergulhadas em detalhes de suas vidas interiores e que projetam erroneamente como algo externo coisas que na verdade pertencem a seu mundo interior. Deus aí nem existe, está dentro dos crentes e é essa a sacanagem: quanto mais eles clamam por tê-lo manifesto no mundo, mais e mais estão olhando, de um jeito enviesado, para si próprios.
Sobre o outro texto, o "fim de tarde", bem, é outra múmia de 2005, mas uma coisa eu lembro e confesso: qualquer sensação que você tenha tido na leitura, dificilmente foi proposital. Eu escrevo quando preciso gritar pra dentro e isso é importante pra mim, mas estou longe de trabalhar as palavras de um jeito instrumental como um escritor de verdade que as usa como blocos pra construir uma parede deste ou daquele jeito. Também não tenho os conhecimentos literários que gostaria. Mas não precisa espalhar isso por aí, combinado?
"Boas filosofias são as dos filmes que ninguém assiste, porque levam a insights que ninguém teve ainda."
É, admito que o raciocínio não deva ser extrapolado... Ou então coisas boas jamais seriam conhecidas...
Enfim...
Volto aqui para leituras mais calmas depois, pois agora o sono me corrói as vísceras. Beijos.
Ah, tenho certeza que o café seria prazeroso, mas devo me conter em minhas limitações de Pseudônimo e aceitar que eu nem mesmo existo fora desse espaço abstrato em que escrever e ser se confundem tão facilmente. Espero que não se ressinta, e que entenda que vida de Pseudônimo não é fácil...
Ah, se fiquei ressentido foi comigo mesmo, por ser um pseudônimo fraco demais pra terminar de nascer e virar um heterônimo e traumatizado demais a ponto de ter pudores frescos diante de um convite tão amigável como esse do café.
Mas pseudônimos, curioso que seja, andam por aí anônimos muito embora vistam um excesso de nomes, veja só. Vai saber por onde este anônimo tem andado ou parado pra tomar café por aí...
Está bem... Este último parágrafo foi desnecessário, pura diversão minha com a situação, mas pode ficar tranquila, até onde eu saiba nunca tomamos nenhum café por perto não. E nem suco, ou refri, ou o que for...
Beijos não ressentidos!
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