quarta-feira, 28 de maio de 2008

O póstumo e a lua


A lua estava cheia de si, cheia de luz, cheia de sol.
Vagueava sua luz pela cidade.
A moça sentada na varanda a olhava.
E a lua disse:
_ Serena-te, silencia-te e ouça o barulho do turbilhão que há dentro de você.
A moça estava acompanhada de um morto, ela sempre levava um morto para cama antes de dormir. Acariciava-lhe as faces passando as páginas com os dedos.
Olhava para a lua sem piscar, hipnotizada. Viu aquele satélite em seu total esplendor refletir-se na água. Lembrou que quando era criança sonhava que pulava no riacho e o alcançava.
Sentiu desenvolver dentro de si o animal que a doma, quis colocar-se na posição quadrúpede, uivar loucamente, saudá-lo.
O morto disse que não.
_ Coloca-te sentada, pega uma pena e tinta, rabisca palavras num papel, veja em que posição está a lua no seu mapa astral, transforma o animal em gente e faça dele poeta. Seja você o animal, a pessoa e o poeta e transforma outros animais em pessoas e poetas, seja mil, seja um milhão, seja infinita.
A moça olhou para o morto serena como a lua havia mandado.
_ Acalma-te, gênio! Apenas cogitei a hipótese de uivar para a lua, ainda não passei isso pelo crivo da razão! Senta ao meu lado, olha para a lua e ve se entendes a metafísica.
O morto riu coçando a barba, olhou para a moça em silêncio, fechou os olhos e procurou sentir a sensação gostosa que o atrevimento da moça lhe causava.